terça-feira, 19 de abril de 2011

O Aleph -Jorge Luiz Borges


Me sinto em um momento da minha vida em que o passado, presente e as possibilidades do futuro de encontram e me sinto no olho desse furacão: parado e em silêncio... Inúmeras possibilidades ao mesmo tempo e milhares de portas para abrir e eu parado, em silêncio ! O meu Aleph pessoal ! Onde tudo esta bem, mas uma sensação que a vida é um pouco mais (ou um pouco menos ) que esta que estou vivendo.. Estou numa fase de sincronicidades onde tudo parece conhecido, parece vivido e quando volto dessa viagem, estou aqui ainda parado e em silêncio...



"Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de quase intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajotas que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o fato de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de algumas samambaias no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta
da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.

Senti infinita veneração, infinita lástima.

– Tonto ficarás de tanto bisbilhotar onde não te chamam – disse uma voz enfadonha e alegre. – Mesmo que esquentes a cabeça, não me pagarás num século esta revelação. Que observatório formidável, che Borges!

Os sapatos de Carlos Argentino ocupavam o degrau mais alto. Na brusca penumbra, consegui levantar-me e balbuciar:

– Formidável. Sim, formidável.

A indiferença de minha voz causou-me estranheza. Ansioso, Carlos Argentino insistia:

– Viste tudo bem, em cores?

Nesse instante, concebi minha vingança. Benévolo, manifestamente apiedado, nervoso, evasivo, agradeci a Carlos Argentino a hospitalidade de seu porão e o instei a aproveitar a demolição da casa para afastar-se da perniciosa metrópole, que a ninguém – creia-me, a ninguém! – perdoa. Neguei-me, com suave energia, a discutir o Aleph; abracei-o, ao despedir-me, e repeti-lhe que o campo e a serenidade são dois grandes médicos.

Na rua, nas escadarias de Constitución, no metrô, pareceram-me familiares todos os rostos. Tive medo de que não restasse uma única coisa capaz de surpreender-me, tive medo de que não me abandonasse jamais a impressão de voltar. Felizmente, depois de algumas noites de insônia, agiu outra vez sobre mim o esquecimento..." Borges Simplesmente Maravilhoso !!